Os debates sobre os crimes cibernéticos e a segurança da informação marcaram o painel inicial do segundo e último dia do XV Seminário Internacional Ítalo-Ibero-Brasileiro de Estudos Jurídicos, promovido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O primeiro painel da manhã desta sexta-feira (3) foi mediado pelo presidente do Instituto Ítalo-Ibero-Brasileiro de Estudos Jurídicos e coordenador científico do evento, professor Carlos Fernando Mathias de Souza. Em comum, os palestrantes se posicionaram a favor de que é necessária a crescente cooperação jurídica internacional para o enfrentamento da criminalidade em ambiente virtual, dada a sua complexidade.
De acordo com o presidente do Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos, Rodrigo Kaysserlian, o caráter global dos crimes cibernéticos faz com que sejam enquadrados em diferentes jurisdições nacionais, dificultando a sua investigação e punição. "Recente estudo indica que apenas 0,05% dos crimes cibernéticos serão identificados e apurados em 2021", comentou o professor.
Em sua exposição, o advogado e professor Antenor Madruga defendeu que a cooperação jurídica internacional contra os crimes cibernéticos dispense a exigência de controle prévio dos atos jurídicos estrangeiros pelas cortes superiores brasileiras. "Se queremos, de fato, viver em um mundo mais seguro, teremos de deixar que os nossos controles sejam posteriores, e no âmbito da primeira instância", propôs o acadêmico.
Por sua vez, o professor Carmelo Domenico Leotta, da Università Europea di Roma, abordou o tratamento conferido aos crimes cibernéticos pela legislação penal italiana. Segundo o jurista, a proteção de dados é, atualmente, o principal desafio para os sistemas jurídicos na Itália e em todo o mundo. "Hoje, mais do que nunca, possuir uma informação significa, também, poder" – resumiu Leotta.
Métodos consensuais de solução de conflitos em meio virtual
O segundo painel, presidido pela ministra Nancy Andrigui, foi voltado para a discussão da arbitragem, da conciliação e da mediação on-line. Ao abrir os trabalhos, a ministra destacou a efetividade dos métodos alternativos para assegurar a pacificação social.
"Sempre fui uma ardorosa defensora dos meios adequados de solução de conflitos, porque promovem, quase sem dor e em menos tempo, a distribuição dos bens da vida de modo a garantir o viver em paz", declarou.
Na mesma linha, o desembargador José Carlos Costa Netto, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), apresentou dados estatísticos da corte sobre a conciliação e a mediação on-line durante a pandemia da Covid-19. Na avaliação do magistrado, os resultados foram expressivos, tendo sido obtidos cerca de 45 mil acordos em 2020.
Por sua vez, o professor associado da Universidade de São Paulo (USP) Otavio Luiz Rodrigues compartilhou reflexões a respeito do futuro dos mecanismos autocompositivos no contexto digital, com a ampliação do uso da inteligência artificial. "Nós temos que falar a linguagem do mundo atual e dar respostas rápidas e efetivas, mas não podemos esquecer que o núcleo da tradição do direito é a centralidade humana", alertou.
Ao encerrar o painel, o coordenador do curso de direito da Università Europea di Roma, Aniello Merone, tratou do panorama atual e dos desafios relativos aos sistemas virtuais de resolução consensual de controvérsias no âmbito do comércio eletrônico mundial. Ele abordou questões como a definição da jurisdição diante da transnacionalidade dos conflitos e a imparcialidade das plataformas de intermediação entre clientes e fornecedores.
Democratização da informação e propriedade intelectual
A ministra Isabel Gallotti abriu o painel "A propriedade intelectual na era digital" destacando a sensibilidade do tema e os desafios do Judiciário para transportar os conceitos tradicionais de direito autoral, forjados ao longo de décadas, às ágeis relações travadas pela internet.
"De um lado, temos a rápida divulgação, possibilidade de pesquisa e acesso ao conhecimento de forma global, que proporcionam um acesso democrático e instantâneo à informação, mas, por outro lado, há a necessidade de compatibilizar essa conquista e a proteção da propriedade intelectual, do direito moral e patrimonial do autor."
A primeira palestrante foi a professora da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP Maria Luiza Egea, que lembrou o importante papel que os direitos autorais desempenham na criação, produção e difusão do conhecimento.
"A exploração desses bens só será viável, só será legítima, se forem respeitadas as leis que regulam os direitos autorais, os tratados internacionais. Além disso, há de se considerar as relações jurídicas que se estabelecem entre os detentores dos direitos autorais e as empresas que disponibilizam os meios de comunicação."
Em seguida, a diretora jurídica da Associação Brasileira dos Direitos de Autores Visuais (Autvis), Mariana Mello, discorreu sobre gestão coletiva das artes visuais e novas tecnologias. A especialista explicou que a Autvis, que trabalha em parceria com a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), é a única associação habilitada no Brasil para o exercício da arrecadação coletiva de direitos autorais – trabalho que acontece com supervisão estatal.
"A garantia e a efetividade da produção autoral brasileira estão diretamente ligadas à atuação conjunta dos titulares – inicialmente dos autores teatrais, compositores musicais e suas associações voltadas para a cobrança de seus direitos autorais."
O presidente do Instituto dos Advogados do Distrito Federal, Eduardo Lycurgo Leite, falou sobre o impacto da evolução tecnológica no comportamento da sociedade e como isso influencia a atuação dos profissionais da área jurídica.
"Nós, operadores do direito, reconhecemos os fatos que nos chegam ao conhecimento no presente, mas são fatos do passado. Precisamos tentar olhar para o passado para entender o que acontece e como nós podemos resolver aquele problema que existiu."
Novos desafios do direito internacional
Mediado pelo ministro Og Fernandes, o painel "O direito internacional e os novos tempos" contou com a palestra do consultor legislativo Márcio Garcia, professor do programa de doutorado e relações internacionais da Universidade de Brasília.
O docente rememorou a trajetória do direito internacional e seus desdobramentos, enfatizando a importância da sua evolução para a ordem da sociedade internacional. Segundo ele, todo o ordenamento jurídico é a imagem da sociedade que pretende disciplinar. "Tendo em vista a dimensão da sociedade internacional, seus desafios são superlativos. O direito internacional contribui para a segurança, a previsibilidade e o aprimoramento das relações internacionais. Esse ramo das ciências jurídicas estabelece, na pior das hipóteses, meio de diálogo entre seus atores", disse.
Fernando Acunha, professor de direito comparado do UniCEUB, afirmou que não se pode mais pensar em uma perspectiva meramente nacional, uma vez que os desafios da atualidade não são isolados, mas fazem parte de uma conjuntura global.
De acordo com ele, os problemas atuais ou são comuns – que não dependem da resolução de apenas um único estado – ou são repetidos – se repetem em vários estados. Para o professor, é cada vez mais importante que os governos nacionais prestem atenção ao que ocorre fora do próprio país, não só para aprender, mas também para entender que, isoladamente, nenhum tipo de país tem futuro.
A professora Maristela Basso, da Universidade de São Paulo, destacou a necessidade de se buscar um conceito de justiça global, que responda às necessidades de uma sociedade interconectada. Na sua avaliação, o modelo de um estado forte, com relações cordiais baseadas na soberania, e que busca a paz por meio do isolamento, não é mais suficiente. "As cadeias produtivas, políticas, econômicas e humanitárias são dependentes uma das outras. É preciso olhar para o direito internacional com um novo paradigma", declarou.
Privacidade, regulação e dados pessoais
O quinto painel foi presidido pelo ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Bastide Horbach e teve como tema "A privacidade e a regulação da internet". O ministro destacou a importância dessa discussão na atualidade, com a internet e as redes sociais tendo se tornado parte integrante do cotidiano da sociedade. Ele lembrou que o Brasil é um dos países que mais usa internet no mundo.
O primeiro palestrante, Danilo Doneda – professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) –, destacou que os sites intensificaram o uso de mecanismos para coletar, armazenar e tratar dados de clientes e usuários. "Isso mudou significativamente nossas rotinas e as questões de privacidade ficaram em evidência. São necessárias mudanças no ordenamento jurídico quanto ao tratamento dos dados pessoais", comentou.
Ele opinou que o Brasil seguiu um caminho "peculiar", com a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor neste ano, e do Marco Civil da Internet – leis que seriam uma boa base para o desenvolvimento de políticas.
Em seguida, a professora de direito da Universidade de Brasília Ana Frazão apontou que a internet já não é um espaço "tão democrático", por questões como excesso de informação, falta de confiança e assimetria informacional. "As chamadas ‘plataformas’ têm um grande poder de censura e distribuição de dados, como gatekeepers da informação", declarou.
Ana Frazão afirmou que os dados coletados são usados para fazer julgamentos sobre as pessoas, mesmo sem o conhecimento delas. "A manipulação de informação pode influir no rumo de eleições, atitudes como cidadãos e como consumidores", alertou. Ela disse que vários teóricos do direito avisam que o "consentimento" do usuário não é tão simples e exige mais regulação e compliance.
A última palestrante do painel foi a advogada Eduarda Chacon Rosas, pesquisadora do tema, para quem a LGPD adotou a regulação responsiva, que tenta atender demandas que surgem dos cosumidores. "O tema envolve muitos interesses financeiros e sociais em uma questão muito nova. Há interesses de partidos, empresas poderosas e grupos de interesse", comentou.
A regulação responsiva partiria de um esforço para, antes de punir, tentar mudar as perspectivas e promover ações educacionais. "Hoje, vemos muitos profissionais de direito e de tecnologia trabalhando juntos para tentar cobrir essas necessidades", comentou. Outro desafio seria a regulação da inteligência artificial, que tem sido usada por diversas empresas para fazer previsões e sugerir ações. "Elas têm um grande poder de influenciar a política e os mercados de trabalho e de consumo." A advogada disse que o Projeto de Lei 2.120, tramitando em regime de urgência na Câmara dos Deputados, causa preocupação, pois deveria haver mais discussão pela sociedade.
Ciência jurídica e sociedade digital
O último painel do seminário, sobre "Novos direitos e a realidade da sociedade digital", contou com a mediação do vice-presidente do STJ, ministro Jorge Mussi. Para o magistrado, o novo olhar proporcionado pelos debates desses dois dias trouxe importantes reflexões para ampliar "os horizontes de uma Justiça moderna, sem descuidar dos direitos e das garantias fundamentais".
O professor Thiago Jabur, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, lembrou a teoria tridimensional concebida por Miguel Reale, segundo a qual o direito é a conjugação de três fatores: norma, valor e fato. Para ele, o fator tempo pode ser incluído como preponderante, à luz da sociedade digital. Segundo o docente, mais do que criar novos direitos, a preocupação atual é dar uma resposta às novas demandas, em especial às violações de direitos, como os de personalidade, de proteção de dados, de autoria e de garantias fundamentais.
Ricardo Bacelar, professor da UniFOR e presidente da Comissão de Arte e Cultura do Conselho Federal da OAB, lembrou o crescimento dos conflitos surgidos pela internet, a partir das novas formas de comunicação. Segundo ele, muitos esbarram em temas como marco legal, liberdade de expressão, direito à privacidade, bem como o tratamento dos dados pelo poder público e pelo setor privado. "Com a pandemia, as relações digitais se tornaram preponderantes, bem como os conflitos que vieram disso. Temos que ficar atentos, porque esses direitos têm de ser reatualizados para que os conflitos cessem e deem espaço a outros, que impulsionam novos direitos", afirmou.
O advogado do Senado Federal e ex-juiz federal Rômulo Gobbi ressaltou que o distanciamento físico imposto pela pandemia alterou de forma radical as relações sociais, mas não houve tempo para o direito se adaptar. Ele ponderou que o funcionamento do Congresso Nacional pressupõe o crescimento do debate e a formação do consenso político; por isso, as alterações legislativas não acompanham a velocidade das alterações geradas pela internet. Gobbi destacou a preocupação com as novas formas das práticas criminosas, que ultrapassam a própria soberania estatal, uma vez que residentes de um país podem praticar crimes virtuais em outro.
Ao encerrar o seminário, o ministro Jorge Mussi agradeceu ao organizador, professor Mathias de Souza, pela riqueza dos debates e pela excelência do evento. Para o magistrado, ao analisar as alterações das relações jurídicas dos últimos tempos e os novos direitos gerados pelos avanços tecnológicos, as palestras mostraram que "a realidade digital não nos oferece passo atrás e busca uma ciência jurídica à altura da realidade social".
Na sua avaliação, ao proporcionar o compartilhamento de experiências e conhecimentos, o evento permitiu refletir que a modernização do ordenamento jurídico passa pela necessária avaliação do meio social.